Arrasta-me pela lama como se gostasses de mim
num tratamento de beleza que me estraga a pele mas
que me doura como um Sol que existe só para nós dois
por sermos um que foi feito à nossa medida antes do
molde partir para longe para um sítio onde o amor não
existe porque desiste
e eu sinto-te com a delicadeza da borboleta que vai fazer
o tufão
e dá-me um beijo agora porque próximo não há é que
não me lembro dele por ser depois
e os beijos são da cor dos lábios para condizer com a cor
da pele que levas por cima do corpo
e trago-te comigo como a fotografia tipo passe que eu
mostro ao universo na paragem do autocarro
e a senhora com dores porque foi operada à vesícula
lê-te vislumbra-te pela dificuldade do papel rectangular
que te mostra a beleza que a máquina não viu por ser
instantânea mas ainda assim a senhora diz é tão
linda a sua namorada
e ela não sabe que tu morreste
e que antes de morrer não me querias
e eu não lhe conto
e digo-lhe mentiras
e falo dos passeios no parque que não demos
e milho aos pombos que não demos
e apalpões nas bochechas dos filhos dos outros que não
demos
e não demos porque não demos
porque não quiseste
porque não deixaram
e tenho as saudades que é possível ter da pessoa imaginária
que quase esteve
e tenho a sensação de que a queria tanto junto de mim
como os que estiveram para não a conhecer
estiveram lá quase
e eu estive quase lá mas ela não deixou
e ela não está
e ela não esteve
e ela não é
e ela não sou
e ela não estamos
e ela não consigo
e ela não deixa
e ela não
não percebe as palavras por ser um cadáver amado
até ao infinito
até ao último grito
sem som
sem luz
sem são
sem triste nem errado
nem verme
nem lustre
vive-se
e tu vais ser a recordação que guardo na cabeça
o tempo vai ser o nosso tempo
e a história feita pelos livros serve para embelezar o
nosso amor que é eterno e que nunca existiu
João Negreiros 2008
Luto Lento